O que é melhor: ser belo, inteligente, espirituoso — ou ter alguma outra qualidade? Este mito nos dá uma excelente resposta nas palavras finais do deus Jecha, divindade da antiga religião eslava pré-cristã. Essa religião era praticada em áreas que incluem a atual Polônia e partes da Ucrânia.

Certa vez, Mila disse a seu filho Lelek:
— Jecha, o deus criador, não foi muito generoso contigo. Não tens beleza, não tens inteligência, não tens espírito nem alegria. Teus vinte anos se tornam assim opacos, sem brilho, sem aromas, sem sons.
— Mamãe, eu sou um moço modesto. Sei que não tenho nem beleza, nem inteligência, nem espírito, mas a alegria não me falta nunca.
— E estás contente com a tua nulidade?
— Estou contente com a minha vida.
— Os teus coetâneos possuem todos, sem exceção de um só, alguma coisa de que se possam envaidecer. Tu, pobre tolo, não podes gabar-te de nada.
Lelek ergueu os ombros. Admitia que não tinha nenhum motivo de vaidade, mas isto não lhe ocasionava a menor amargura.
— Filho, compreendes pouca coisa — insistia a mãe. — Tu te recolhes na penumbra da tua vida humilde e não sabes que existe a grande luz, que existe o sol fulgurante. Vai até Jecha, mostra-lhe a tua miséria, pede-lhe um dom qualquer.
Lelek era um bom filho, um filho obediente e compassivo. Para satisfazer a mãe, tratou de ir à presença do deus poderosíssimo.
— Ó Jecha, eu não tenho beleza, nem inteligência, nem espírito. Oferece-me qualquer coisa que me faça admirado pelo mundo e que me dê o direito de me sentir envaidecido.
— Estás bem certo, Lelek — perguntou o deus — de não haveres recebido nenhum dom de mim?
— Estou certíssimo. Não tenho a mínima virtude, nem traços de qualidade e todos acham razão para zombar de mim ou desprezar-me.
— Quem te poderia desprezar? Só os que tiverem a alma muito mesquinha. Mas tu certamente não darás importância a tais estultícies, não irás sofrer por causa de zombarias idiotas.
— Efetivamente não.
— E dize-me uma coisa, sentes inveja dos teus companheiros belos, inteligentes ou espirituosos?
— Não conheço o que seja a inveja. Admiro a todos igualmente e aplaudo-os de todo o meu coração.
— Pois aí está, Lelek. Fiz-te esse dom preciosíssimo, o maior que se poderia dar aos homens — não conhecer a inveja. Em consequência desse privilégio raríssimo, estás livre do mal que diminui em todos os corações a alegria de viver, e graças a tal dom poderás ser eternamente feliz, verdadeiramente feliz.
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Extraído da Enciclopédia Universal da Fábula, vol. XXIII, “Lelek diante do trono de Jecha”. Tradução de Hilário Correia.
Imagem: Uma tempestade nas Montanhas Rochosas, de Albert Bierstadt. Fonte: Wikimedia Commons.
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