Nesta passagem do romance O Sobrinho do Mago, de C. S. Lewis, duas crianças foram transportadas por meio de mágica para uma antiga cidade deserta, num outro mundo. Ali, elas sem querer despertam uma rainha adormecida, que lhes conta a história do lugar.
Notem como C. S. Lewis usa esta cena para revelar que a rainha tem as características que definem os psicopatas — eles não têm sistema moral além de seus próprios desejos, sempre culpam suas vítimas, e são incapazes de remorso.
Qualquer semelhança com ditadores que hoje governam em nosso mundo não tem nada de coincidência.

Baixo, próximo ao horizonte, pendia um grande sol vermelho, muito maior que o nosso sol. Digory sentiu imediatamente que era também mais velho que o nosso sol: um sol próximo do fim da vida, cansado de olhar para aquele mundo. À esquerda do sol, mais alta, havia uma única estrela, grande e brilhante. Eram as duas únicas coisas à vista no céu escuro; e faziam um par desolado.
Sobre a terra, em todas a direções e até onde a vista alcançava, estendia-se uma vasta cidade em que não se via coisa viva. Todos os templos, torres, palácios, pirâmides e pontes lançavam sombras longas e agourentas à luz daquele sol fenecido. Um grande rio correra através da cidade em tempos idos, mas a água desaparecera há muito, e o rio era agora apenas uma larga vala de poeira cinzenta.
“Olhem bem para aquilo que jamais olho algum verá novamente,” disse a rainha. “Esta era Charn, a cidade grandiosa, a cidade do rei dos reis, maravilha do mundo, talvez de todos os mundos. Seu tio governa uma cidade tão grandiosa quanto esta, menino?”
“Não,” fez Digory. Já ia explicar que o Tio André não governava cidade alguma, mas a rainha continuou:
“Está silenciosa agora. Mas eu estive aqui quando o ar estava cheio dos ruídos de Charn; o marchar de pés, o ranger de rodas, o estalar de chicotes e os gemidos dos escravos, o trovão das carruagens, e os tambores do sacrifício ribombando nos templos. Estive aqui (mas já era perto do fim) quando o rugido da batalha subia de todas as ruas, e o rio de Charn corria vermelho.” Ela fez uma pausa e acrescentou, “Em um instante, uma mulher obliterou a cidade para sempre.”
“Quem?” perguntou Digory com voz sumida; mas já tinha adivinhado a resposta.
“Eu,” disse a rainha. “Eu, Jádis, a última rainha, mas a rainha do mundo.”
As duas crianças ficaram em silêncio, tiritando no vento frio.
“Foi culpa de minha irmã,” disse a rainha. “Ela me forçou a isso. Que a maldição de todos os poderes esteja sobre ela para sempre! A qualquer momento eu teria estado pronta a fazer a paz — sim, e a poupar sua vida também, desde que me entregasse o trono. Mas ela não o quis. Seu orgulho destruiu o mundo inteiro. Mesmo depois começada a guerra, existia uma solene promessa de que nenhuma das partes usaria de magia. Mas quando ela quebrou sua promessa, o que eu podia fazer? Tola! Como se não soubesse que eu conhecia mais magia do que ela! Ela sabia até que eu conhecia o segredo da Palavra Execrável. Será que pensou — sempre foi uma pusilânime — que eu não usaria esse segredo?”
“O que era?” perguntou Digory.
“Era o segredo dos segredos,” disse a Rainha Jádis. “Os reis da nossa raça tinham sabido desde há muito que havia uma palavra que, se pronunciada com as cerimônias apropriadas, destruiria todas as coisas vivas exceto aquele que a pronunciasse. Mas os reis antigos eram fracos e de coração sensível, e ligaram-se a si mesmos e a todos os que viessem após eles com terríveis juras de que nunca sequer buscariam conhecer aquela palavra. Mas eu a aprendi em um lugar secreto, e para tal paguei terrível preço. Não a usei até que minha irmã me forçou a fazê-lo. Lutei de todos os outros modos para subjugá-la. Derramei como água o sangue de meus exércitos — ”
“Monstro!” murmurou Polly.
“A última grande batalha,” continuou a rainha, “rugiu por três dias aqui na própria Charn. Por três dias assisti-a deste mesmo lugar. Não usei meu poder até que o último de meus soldados tinha caído, e a mulher maldita, minha irmã, à frente de seus rebeldes, estava no meio daquela escadaria que leva da cidade ao terraço. Esperei até que estávamos tão próximas que podíamos ver o rosto uma da outra. Seus horríveis olhos cruéis relampejaram, e ela disse, ‘Vitória.’ ‘Sim,’ disse eu, ‘Vitória, mas não sua.’ Então pronunciei a Palavra Execrável. Um instante depois, eu era a única coisa viva sob o sol.”
“Mas e o povo?” boquiabriu-se Digory.
“Que povo, menino?” perguntou a rainha.
“As pessoas comuns,” disse Polly, “que nunca lhe fizeram mal. E as mulheres, e as crianças, e os animais.”
“Você não entende?” disse a rainha (ainda falando com Digory). “Eu era a rainha. Eles eram meu povo. Por qual outra razão estavam aí senão para fazer a minha vontade?”
“Mesmo assim, coitados deles,” disse Digory.
“Esqueci que você é só um menino comum. Como poderia entender as razões de estado? Você deve aprender, criança, que o que seria errado para você ou qualquer outra pessoa do povo não é errado para uma grande rainha como eu. O peso do mundo está sobre nossos ombros. Devemos ser liberados de todas as regras. Nosso destino é elevado e solitário.”
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Tradução: Beatriz Becker
Imagem: Ruínas de uma Cidade Antiga, de John Martin. Fonte: Wikimedia Commons.