[Conto natalino] Um Natal na Palestina

A história de Natal deste ano é este conto de G. Lenôtre. Se quiser baixar a história em .pdf, clique aqui.

Revolucionários tomam o Palácio da Tulherias durante a Revolução Francesa

Eram quatro: todos oriundos do bairro de Santo António, esse vulcão extinto que outrora, com intervalos quase regulares, vomitava sobre Paris torrentes de lava revolucionária.

Numa manhã de Agosto de 1792, os quatro tinham ido na onda do motim, que rolava para as Tulherias; espicaçaram, a chuço, os colchões do Capeto Gordo,[1] fuzilaram os deuses que imperavam nos Olimpos dos tectos pintados, quebraram alguns vidros, beberam muitos copos e, como verdadeiros garotos, sacudiram pelas altas janelas da galeria de Diana, para “fazer neve”, todos os almofadões de penas do palácio, esventrados de alto a baixo.

Da política, aliás, pouco se lhes dava, o que não os impediu de aparecerem alguns dias mais tarde, em Setembro, nos lugares onde se matava a torto e a direito; não para tomarem parte na carnificina, mas para ver, como mirones atraídos pela novidade do espectáculo. Depois, alistados ao som do tambor e do canhão de Pont-Neuf nos batalhões de voluntários, tinham partido, sempre a rir e a cantar, chalaceando para o exército de Champagne; dali, tinham passado para o regimento do traidor Dumouriez, [2] dormindo de dia, marchando de noite, indisciplinados – bons soldados apenas no campo de batalha.

O acaso que os reunira prolongou-se: juntos foram incorporados no exército dos Alpes, juntos fizeram parte dessas hordas lendárias que o pequeno Corso lançou vitoriosamente sobre a Lombardia. [3] Tinham partido para a guerra descalços, famintos e miseráveis: depois da campanha acharam-se bem calçados, gordos e prósperos. Ninguém sabia melhor que eles tirar partido das circunstâncias e aproveitar os manás…

Tinham esquecido há muito os nomes herdados dos pais, e adoptado designações mais conformes com o seu modernismo: um intitulava-se Nonidi, outro Decius, o terceiro Tournesol, e último Pimprenelle: tudo palavras tiradas do calendário revolucionário.

Quanto à moral dos quatro, resume-se em duas palavras: tinham por única regra de conduta o desejo de viver o mais à larga possível, não se fiavam nos seus chefes, detestavam os aristocratas e os ricos, desprezavam, como era de estilo, a superstição e os padres; nas aldeias onde acampavam, eram os primeiros a arrombar a igreja, cozinhavam o rancho em fogueiras feitas com a madeira entalhada dos confessionários, acendiam os cachimbos na lâmpada do Santíssimo, bebiam o vinho das galhetas, e das toalhas de altar faziam lenços – façanhas que lhes tinham rendido a reputação de espíritos fortes e de filósofos.

Enfim: entusiasmo, oportunismo, audácia; bons rapazes, no fundo, tão depressa bandidos como heróis. Verdadeiros parisienses dos bairros populares, transformados em conquistadores do Mundo.

Ora, nesse ano de 1799, depois de terem cruzado os mares, tomado parte na conquista do Egipto, vencido os Beduínos, escrito o nome nas Pirâmides, Nonidi, Decius, Tournesol e Pimprenelle faziam parte das tropas de ocupação que após o cerco de São João d’Acre tinham ficado na Palestina, e às quais competia levantar, entre os judeus de Jerusalém, de Gieffa e de Gaza, o imposto destinado a pagar os encargos da campanha.

Havia alguns meses que a brigada de que eram ornamento e glória os nossos quatro parisienses acampava junto às muralhas da Cidade Santa: as patrulhas percorriam a região em todos os sentidos, a fim de proteger os cobradores do imposto. À aproximação das troças francesas, os peregrinos, como se pode imaginar, tinham abandonado os Lugares Santos. As igrejas católicas ou gregas estavam desertas; até os Turcos tinham fugido das suas mesquitas. Na Palestina restavam apenas os Judeus, que, após algumas veleidades de resistência, tinham sido conscienciosamente espancados e se mostravam por isso de uma docilidade exemplar.

Ao entardecer do dia 24 de Dezembro, Nonidi, que era sargento, e os seus três companheiros, estavam de sentinela no campo; o ar era tépido, a noite escura; os quatro homens estavam sentados num pequeno vale – verdadeiro deserto de calhaus e plantas bravas, entre duas altas colinas que se perdiam no céu sombrio. A hora era melancólica mas cheia de suavidade; o coaxar das rãs nas cisternas abandonadas enchia a tarde silenciosa. Decius dormia; Tournesol assobiava a Carmagnole; [4] Pimprenelle comia uma bucha de pão; Nonidi não fazia nada. Ali estavam havia uma hora, quando, na escuridão, no alto de uma das colinas que fechavam o vale, um ponto luminoso brilhou no céu. Foi primeiro uma luz vaga, que pouco a pouco se tornou mais nítida, avançando pelo céu com um movimento regular e vagaroso.

— Que é aquilo? – murmurou o sargento em voz baixa.

O ponto luminoso crescia agora, cintilava no ar puro: dir-se-ia um astro que baixasse sobre o tranquilo vale adormecido.

— É um fogo-fátuo — disse Tournesol —; vi muito daquilo nos pântanos de Bièvre.

— Um fogo-fátuo a esta altitude não pode ser — replicou Pimprenelle.

Decius, que tinha acordado entretanto, sentara-se e olhava para a luz com ar aterrado.

— Oh! — exclamou. — É a estrela!

— A estrela?

— Sim — acrescentou o soldado, baixando a voz, mas sem despregar os olhos da luz. — Sim, foi nesta terra… Ouvi contar há muito tempo…

— Desembucha, homem!

— Vocês sabem tão bem como eu… A estrela milagrosa que guiou os pastores ao presépio. Estamos na Noite de Natal… É a estrela, digo-lhes eu que é a estrela.

— Estúpido — rosnou Pimprenelle.

Os outros, um tanto impressionados, não ripostaram.

— Já se vai ver — disse o sargento —; peguem nas espingardas e nos sacos e venham daí, mas nem uma palavra! Vamos lá!

Os quatro homens equiparam-se e, levantando-se, aproximaram-se da saída do vale: a estrela, agora, descia obliquamente na direção deles, e começou a precedê-los. Apressaram o passo para a alcançar. Nonidi ia à frente, ansioso por esclarecer o enigma. Tournesol e Pimprenelle seguiam-no com desembaraço; Decius ia atrás de todos, sem entusiasmo, resmungando:

— É a estrela… Ia jurar que é a estrela…

O sargento de repente parou:

— Idiota — disse em voz baixa —, olha bem para a tua estrela. É um cidadão que leva uma lanterna. Onde diabo irá?

E então, sentindo pesar sobre si o olhar trocista dos camaradas, Decius empunhou a espingarda:

— Aquele vai pagar caro o susto que me pregou!

Com um gesto, o sargento deteve-o:

— Nada de tolices, por agora. Temos de descobrir o que anda este civil a fazer por aqui a estas horas.

*

A estrela desembocara na planície; ali a escuridão era menos densa e os quatro soldados distinguiram, recortada no céu ainda rosado do crepúsculo, a silhueta do homem que levava a lanterna: vestia uma longa túnica, e tinha na cabeça o chapéu em bico dos Arménios. Dirigiu-se para um olival cortado de pequenos muros de pedra solta; depois virou para um caminho pedregoso, e logo tornou a mergulhar no escuro.

Nonidi e os seus homens, guiados pela luz que a lanterna projectava, estugaram o passo. Encontraram-se na rua estreita de uma aldeia abandonada; aqui e além erguiam-se os enormes cubos negros das casas desertas; nem uma luz se coava pelas janelas fechadas; nem um ruído cortava o silêncio. O arménio empurrou uma porta encostada, que logo se fechou atrás dele. Os quatro franceses pararam e ficaram a espreitar pelas fendas da porta.

O homem entrara numa vasta igreja, esplêndida e deserta; sobre os mosaicos dourados, quebrados e enegrecidos, a lanterna projectava estranhos clarões fulvos; quatro ordens de colunas esbeltas sustentavam a abóbada meio arruinada. O arménio pousou a lanterna no chão e prosternou-se no meio do templo vazio.

Devotos no interior da Igreja da Natividade em Belém

— Este cidadão não está aqui por bem — disse o sargento. — Parece-me que chegou a altura, rapazes. Engatilhem as armas, e deixem o resto comigo.

Depois, empurrando a porta, entrou na igreja, seguido pelos camaradas. O homem nem sequer se mexeu ao ruído que fizeram; continuava estendido, com a fronte nas lajes.

Nonidi avançou para ele e pousou-lhe a mão no ombro:

— Olá, amigo, não te deixes dormir aí, que o lugar é perigoso…

O arménio levantou a cabeça. Era um velho de barba grisalha. Encarou com ar surpreendido os soldados que o cercavam.

— Estou a rezar — disse, em francês.

Fez-se um silêncio; Nonidi parecia um pouco desconcertado.

— Evidentemente, não é coisa que esteja proibida — replicou, cofiando o bigode —, mas mesmo assim é suspeito… Como se chama este edifício?

— É a Igreja da Natividade.

Os soldados entreolharam-se: aquelas palavras nada lhes diziam.

— E o nome da localidade? — insistiu o sargento.

— Belém.

Há uma tal magia em torno deste nome, que os quatro homens estremeceram. Decius, instintivamente, descobriu-se. Aquele movimento de emoção não escapara ao peregrino: levantou-se e, pegando na lanterna, disse apenas:

— Venham comigo.

Atravessaram a igreja. O arménio caminhava à frente, murmurando orações, e os soldados seguiam-no, caminhando com precaução, tomados de uma espécie de recolhimento. Desceram uma escadaria de pedra, poeirenta e sonora; ao fundo encontrava-se um portal estreito, de mármore branco e sem porta, que dava acesso a uma vasta gruta, dividida numa série de pequenos compartimentos, de estreitos corredores atulhados de altares em pedaços e fragmentos de mármore. A rocha negra, a escorrer humidade, formava a abóbada.

O arménio, sem sombra de respeito humano, sem medo dos “ímpios” a quem servia de cicerone, passeava a luz da lanterna pela gruta e explicava:

— Aqui estava a manjedoura onde puseram o Menino… Aqui deitou-se a Virgem; daquele lado estavam amarrados o burro e o boi. Aí ajoelharam os Reis Magos…

E os quatro soldados, de cabeça descoberta, primeiro curiosos, depois comovidos, olhavam em silêncio para essas coisas que despertavam no seu coração as lembranças apagadas da infância distante, as suaves lendas ouvidas às mães; e pouco a pouco despontava neles o espanto de se acharem ali, nesse lugar augusto, célebre até a consumação dos séculos, nessa gruta mais famosa que os mais altivos palácios — e cuja imensa glória provém apenas de ter abrigado durante algumas horas o mais pobre dos filhos dos homens.

O peregrino explicava como, durante os séculos, dia e noite, os fiéis tinham desfilado por aquele subterrâneo: milhares de círios o iluminavam; os reis de toda a Terra tinham-no enchido de tesouros. Depois viera a guerra: os Franceses invadiram a Palestina, e os Lugares Santos ficaram desertos. Ele, único crente no meio da população que o invasor não expulsara, não tinha querido que nessa noite de Natal o lugar da Natividade ficasse sem uma homenagem. Dito isto, ajoelhou, e sem mais querer saber dos companheiros, recomeçou a orar.

Nonidi, Decius, Tournesol e Pimprenelle não pensavam em se ir embora. Sentiam-se invadidos por uma profunda comoção, irresistível e maravilhosa… Esse lugar, onde havia dezassete seclos tinham acorrido as multidões fiéis, onde tantos corações se tinham exalado em súplicas, esse lugar sagrado prendia-os, mergulhados num recolhimento vago, enternecido e repousante. O sargento nem tentava esconder as lágrimas que lhe deslizavam lentamente pelas faces; e os companheiros ouviram-no até murmurar, olhando para a manjedoura:

— Coitado do pequenito…

Era talvez um pouco familiar, um pouco idólatra, a oração que, sob essa forma tosca, se evolava do seu coração. Mas era tão espontânea e tão sua, que deve ter subido direita ao Céu, como os cânticos mais belos.

E foi uma estranha noite a que ali passaram esses quatro homens, endurecidos por tantas aventuras e andanças, sentindo agora fundir-se a dureza dos seus corações, como a neve derrete ao sol de Abril.

Não era com certeza o fervor dos primeiros cristãos que os animava, e menos ainda a fé esclarecida, donde nascem as firmes convicções. Não: era o passado de ingénua piedade adormecida em toda a alma latina que pouco a pouco despertava neles… Pensavam nas festas simples e piedosas da infância: pedaços de cânticos esquecidos voltavam-lhes à memória.

Viam-se de novo na igreja do seu bairro, e as belas procissões de outros tempos desfilavam ante eles: a cruz alçada, os pendões, as meninas de túnica branca, os guardas a cavalo formando alas, os soldados ajoelhados em círculo diante da custódia, enquanto os tambores rufavam, e as flores de França choviam sobre as ruas…

Pensavam também nos rochedos de cartão e nos carneirinhos frisados do presépio da paróquia, há tanto tempo, nos velhos natais perdidos… Nas lâmpadas de cor que ardiam entre o musgo… Em tanta coisa de que tinham mais tarde escarnecido… E sempre, voltando ao presente, fitavam outra vez a pedra cinzenta, ante a qual o arménio, prostrado, continuava a rezar… E diziam, de si para si:

— Então sempre era verdade? Foi aqui, aqui sobre esta laje que soltou o primeiro vagido a Criança Eterna, hoje adorada em todo o Mundo? Foi aqui que nasceu, para que os rancores de desvanecessem e os corações soberbos se humilhassem?

De madrugada, de regresso à cidade, caminhavam em silêncio, de cabeça baixa, com o coração a transbordar de emoções novas, e não ousavam falar uns com os outros, com receio de não se reconhecerem.

Ignoro o que sucedeu a Decius e a Pimprenelle. Nonidi seguiu a carreira das armas, que lhe foi propícia. O seu nome — o verdadeiro nome — é o de um dos oficiais que Napoleão promoveu a general depois da Batalha de Iena. Quanto a Tournesol, de regresso a França, acabada licença, tomou ordens. Foi ele, supomos, que em 1834, como vigário da paróquia da Assunção, pronunciou ante o féretro de La Fayette [5] o supremo Miserere.

*

Se gostou desta história de Natal, confira também esta lenda natalina da Lapônia.

*

[1] Capeto Gordo – Le Gros Capet, alcunha dada pelos republicanos a Luís XVI.

[2] General francês que, depois de ter servido a monarquia, comandou os exércitos da República; obteve várias vitórias contra os Prussianos e os Austríacos; vencido na Holanda (1793) e demitido, recusou-se a obedecer ao Governo da República e passou-se para as fileiras austríacas.

[3] Alusão à campanha de Itália comandada por Napoleão (o pequeno Corso).

[4] Canto revolucionário do povo de Paris durante a I República.

[5] Militar e político francês (1757 – 1834), que participou na libertação dos Estados Unidos. Teve papel de relevo durante a Revolução, procurando conciliar as novas ideias com a fidelidade à monarquia.

*

Do livro Lendas de Natal, de G. Lenôtre. Editorial Verbo. Tradução de Esther de Lemos.
Imagens: Tomada do Palácio das Tulherias, de Jacques Bertauz, e Interior da cripta da Igreja da Natividade em Belém, de Maxim Nikiforovitsch Worobjeff. Fonte: Wikimedia Commons.

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