[Lenda da Bulgária] O Poço

Tico sentia-se muito cansado. Pesava-lhe, como um fardo insuportável no ombro, a existência pobre e magra. Não tinha casa, não tinha afetos, não tinha nada de seu. Dia sim dia não, faltava-lhe o que comer. Viver assim, que canseira, que sofrimento! Tico ia caminhando pelo campo, seguindo o fio escuro de seus pensamentos sem luz. E falava consigo mesmo:

— Que é que Tico faz neste mundo? Deves arrastar pelos caminhos o corpo doente, o corpo cansado. Não consegues jamais obter nada de bom, pobre Tico! E os dias longos a percorrer, e as noites frias sem abrigo! Parece que, para ti, o tempo ficou parado como o salgueiro que contempla imóvel o lago! Quando o vento sopra e a fronde da árvore se agita, vem a ilusão de que a árvore se move. Mas não, está sempre radicada ao terreno. E assim tu, desgraçado Tico, te iludes alguma vez que o tempo, o teu tempo caminha; iludes-te de esperar a chegada de novos dias; mas os dias novos, os dias lindos, estão muito longe, para além da terrível muralha da eternidade. Os teus momentos sem fim, ó Tico, têm a raiz na dor!

O homem chegou a um poço e apoiou-se ao parapeito. Viu a água escura e luzente lá no fundo. Parecia um olho, um imenso olho que refletisse, com a sua imagem, também a sua infelicidade.

Falou à imagem como havia pouco tinha falado consigo mesmo.

— Fazes bem em permanecer aí. É sempre mais fácil viver na sombra. O sol não zomba de ti, não vem contar-te as rugas com seus raios indiscretos. E não ouves as crianças chorando nem vês os passarinhos morrendo. Aí está: sinto uma vontade louca de ir reunir-me a ti!

Voltou-se de súbito, como se tivesse sido tocado por um espinho. Um velho lhe havia batido no ombro.

Era um ancião muito estranho, muito curvo, muito magro. O rosto parecia uma estopa de barbante negro, tantas eram as rugas que se cortavam em todas as direções. Tico ficou impressionado com os olhos do desconhecido, brilhantes como estrelas; havia neles um fulgor de eterna mocidade.

— Que queres de mim? — perguntou Tico, um tanto bruscamente.

— Compreendo que o poço te seduz. — A voz era harmoniosa, soava qual melodia que se desferisse de um violino muito velho e desbotado pelos anos. — Tua vida é pesada, queres jogá-la na água, reduzi-la a sombra. Mas a vida é um dom de Deus, um terrível e sublime dom. Não importa que estejas cansado. Deves continuar a jornada humildemente. Suportar os calhaus que te ferem os pés no caminho, os espinhos que te rasgam a roupa e a pele nas sebes, a poeira das estradas no verão, as torrentes de inverno, a lama, a fome, a sede, o frio, o calor, a chuva, a neve. Eu venho caminhando muito pelas estradas da existência, e de há longos anos. Caminharei muito ainda. Vês? Estou decrépito. Mas não me queixo. Sei que Deus, mais cedo ou mais tarde, concede o bom repouso a todas as canseiras.

Tico sentiu-se milagrosamente tranquilo.

— Como adivinhaste o meu desespero, bom velho?

— Dentro de mim fala um grande amigo, aquele que um dia eu acompanhei pelos caminhos do mundo. Queres ver o meu amigo? Sua imagem permaneceu nas minhas pupilas.

Tico fixou os olhos do velho e viu uma imagem fulgurante.

— Não compreendo — disse, a tremer. — Não compreendo!

— É Jesus, o sublime Viandante. E eu sou João, o seu apóstolo. Pela vontade divina, meu pobre corpo, destruído pelo tempo, resiste ao perpassar dos séculos. Vivo a girar pelo mundo há quase dois milênios. E quem me vê, fixa o seu olhar no meu e está salvo.

O velho foi andando. Caminhava sem deixar rastros do pé na terra mole, sem fazer rumor, suavemente, como ave em voo.

Tico aproximou-se do poço para rever a imagem. Mas viu ali outra: a que havia contemplado nos olhos luminosos do Apóstolo. Sentiu-se leve, sentiu-se feliz. E voltou a caminhar, olhando o céu e conformado com o seu destino.

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Enciclopédia Universal da Fábula, vol. XXVEditora das Américas – Tradução de Hilário Correia. Imagem: Emmy Thornam, Um Velho Poço. Fonte: Wikimedia Commons.

9 comentários em “[Lenda da Bulgária] O Poço

    1. Que bom, Camila! E obrigada por deixar um comentário — nas estatísticas do site eu consigo ver que a história está recebendo muitas visitas, mas é melhor ainda ver que um leitor gostou tanto a ponto de comentar 🙂

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    1. Olá, Luis! Esta história está na Enciclopédia Universal da Fábula, onde não consta autor nenhum — só dizem que é uma lenda popular da Bulgária.

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