[História da Rutênia] A Roupa Luminosa

História russa sobre São Pedro e um lenhador

Continuamos nossa turnê, conhecendo histórias do leste da Europa e aprendendo novas palavras.

A lenda desta semana vem da Rutênia. Pouca gente conhece esse nome, então explico: Rutênia é a versão portuguesa do nome Rus’, que designa um território, um povo e uma cultura medievais do leste europeu. A Rutênia originou-se onde é atualmente a Ucrânia. Os rutenos deram origem aos povos ucraniano e russo de nossos dias.

Entre os contos tradicionais da Rutênia encontram-se muitas que, como a lenda da Polônia que lemos semana passada, tratam de ferozes combates contra os invasores vindos do Oriente. Mas, para variar de tema, escolhemos esta surpreendente história, que nos ensina — em excelente português — sobre a pretensão e a humildade.

Notemos, além das palavras novas, a inversão da ordem dos substantivos e adjetivos. Por exemplo, logo no primeiro parágrafo, vemos “importante missão” em vez de “missão importante”. Esta forma de escrever dá mais variedade e beleza ao texto.

No final da história há uma lista de dez das minhas palavras, expressões e construções favoritas. As suas, quais serão?

*

A Roupa Luminosa

Diz a lenda que Deus, um belo dia, chamou o porteiro do céu e confiou-lhe importante missão.

— Pedro, pegue esta roupa e vá procurar lá embaixo um homem virtuoso a quem se ajuste como verdadeira luva, compreendeu?

— Compreendi, Senhor.

— Como se a tivesse mandado fazer sob medida…

E Deus pôs nas mãos do santo chaveiro um terno de roupa luminosa, feito inteiramente de raios de luar. São Pedro mandou um querubim buscar uma águia branca, montou-a e disse-lhe:

— Depressa.

— Para onde? — perguntou-lhe a ave.

— Para a terra.

O mensageiro celeste apeou no topo de alta montanha e desceu em direção da planície. Não andou muito e logo foi topando, em uma volta do caminho, com um velho de barbas compridas. Estava de joelhos, de mãos postas e rezava. Pouco depois se ergueu e só então o santo lhe falou:

— Piedoso velho, conte-me alguma cousa a respeito de sua santa vida. Quero edificar-me.

O interpelado respondeu com modéstia:

— Nem imagino com quem estou tendo o prazer de conversar. Mas pode acreditar em minha palavra. Sou inimigo rancoroso das vaidades humanas, não busco elogios, abomino a glória. Os meus semelhantes, pobres criaturas de barro vil, causam-me nojo. Vivo isolado dos homens, de medo de sujar minha alma ao contacto com eles. Por nada deste mundo consentiria em perder o suave perfume do lírio de minha virtude incomensurável.

— Está bem — atalhou São Pedro. — O que você disse já me parece suficiente. Experimente este terno de roupa.

Que o velho fez o que pode para vestir o paletó é verdade. Não é mentira porém que não conseguiu enfiar nem a manga.

O enviado de Deus prosseguiu na caminhada. Acabou, depois de duas ou tres horas de viagem, chegando às portas de magnífico castelo. Perguntou ao príncipe como é que vivia, no que diz respeito à prática de ações meritórias.

— Meu velho, não nego esmola a quem me estende a mão. Distribuo, com largueza, pão, leite e ovos. Nos dias de festa da Igreja convido mendigos para comerem à minha mesa. Esse meu modo de agir tornou-me famoso. Pena é que o tzar não me imite.

— Chega. Estou satisfeito. Experimente esta roupa. Veja se lhe serve.

Não servia. O castelão desenvolveu tremendo esforço e não conseguiu abotoar o paletó.

Para encurtar: São Pedro entrou em palhoças, em palácios, procurou pelo homem virtuoso nas cidades e nos campos. Muitos se disseram virtuosos, mas para uns a roupa, feita somente de raios de luar, era grande demais; para outros, muito pequena. Em pessoa alguma assentava como verdadeira luva, como se a houvesse mandado fazer sob medida. Até que, enfim, desesperançado de dar cumprimento à incumbência que o Senhor lhe dera, o santo pôs-se a caminho da alta montanha em que a águia o estava esperando, a fim de reconduzi-lo ao céu. No caminho encontrou um lenhador, sujo, de mãos nodosas como velhas raízes e olhos brilhantes de malícia.

— Está com muita pressa? — perguntou-lhe o chaveiro.

— Estou. Tenho de cortar, antes do pôr-do-sol, cem árvores desta grossura. São ordens do patrão.

— Muito bem. O trabalho nobilita o homem.

— Não, — respondeu o lenhador. — O que me parece, isso sim, é que o trabalho debilita o homem.

— Você não gosta de trabalhar? — fez São Pedro.

— Não gosto. Se desse ouvidos a meus instintos, jogava este machado fora e ia para o botequim jogar baralho e beber com meus amigos, tão preguiçosos quanto eu. Mas resisto.

— É a sua consciência que não deixa, por certo.

— Que consciência? Por favor, não me faça rir. O que me obriga a trabalhar é, nada mais nada menos, que o medo de morrer de fome.

O santo porteiro, que já vinha cansado de tanta caminhada infrutífera, ao ouvir semelhantes palavras não aguentou mais.

— Olhe. Quer saber de uma cousa? — perguntou ao lenhador. — Vou é descansar um pouco.

— Coitado! — comentou o homem em voz alta, vendo-o deixar-se cair sentado em uma pedra. E, dirigindo-se ao santo:

— E vai mesmo, como me disse, subir até o alto?

— Vou, sim. Por que?

— O Sr. é muito velho. Se não me leva a mal, posso carregá-lo nas costas até lá em cima. Quer?

— Não, obrigado. Você mesmo me disse que é preguiçoso e vai, no entanto, ter de trabalhar muito durante todo o dia de hoje. A mata é aí perto. Por que dar-se a tamanho esforço extra?

— Meu oferecimento foi feito com muito prazer. Se a dúvida é só essa…

E o lenhador pôs São Pedro às costas e levou-o até o lugar onde a águia o aguardava.

— Pronto! Aqui estamos.

— Espere um pouco, lenhador. Experimente esta roupa.

Era aquela a última tentativa do santo.

— Se o Sr. insiste, — disse o homem; — porém esta roupa vê-se logo que não foi feita para mim.

Isso pensava ele. A roupa luminosa assentou-lhe como verdadeira luva.

— Vamos, meu filho, vamos depressa. Você é o filho que o Padre Eterno me mandou procurar entre os homens.

Montaram os dois na águia branca e afastaram-se rapidamente da terra, em que muitas vezes a bondade é mera ostentação e a virtude, desenxabida comédia.

Extraído da Enciclopédia Universal da Fábula, vol. XII; Editora das Américas. Tradução de Oscar Paes Leme.
Imagem: Wikimedia Commons

*

Para aumentar o vocabulário:

Apear: descer de montaria ou veículo

Sua santa vida: em vez de “sua vida santa”

Edificar-se: tornar-se uma pessoa melhor através de um exemplo ou ensinamento

Magnífico castelo: em vez de “um castelo magnífico”

Desesperançado: sem esperança

Dar cumprimento à incumbência: realizar a tarefa

Infrutífera: que não dá resultados

Semelhantes palavras: palavras assim

Deixar-se cair sentado: expressão muito… expressiva. Não precisa de explicação!

Dar-se a tamanho esforço: fazer um esforço grande assim

*

Se você gostou deste conto, pode fazer o download dele em pdf. clicando aqui. E que tal conferir também esta outra história rutena?

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